31 de mar. de 2011

Estórias de Bar

Já havia perdido a conta de quantas garrafas de cerveja o garçom havia retirado da mesa.
Marcos ainda falava com aquela voz chorosa que amava Andréia e que sim, iria reconquistá-la.
Olhei por cima do ombro e vi Anselmo com olhar parado, vidrado, olhando entre o paliteiro e o saleiro como se visse ali a própria Julia Roberts nua.
O cheiro forte de cigarro, a cabeça rodando, o tilintar de outros copos, em outras mesas, e a sensação de que não conseguiria me levantar com dignidade da cadeira.
Marcela aproximou-se do meu ouvido com certa apreensão: “Já está tarde, será que não rola a gente já ir andando amor?”
Procurei pelo maço sobre a mesa onde havia alguns mas nenhum deles era o meu. Apalpei os bolsos da jaqueta e por um instante esqueci o que procurava.
Essas noitadas me custavam sempre um maço de cigarros e uma dor de cabeça tremenda no dia seguinte.
A loirinha que se sentara em nossa mesa por conta do convite de Flávio ainda me olhava assustada.
-“Ele ta legal mesmo para dirigir?” perguntou com certa cautela.
Marcela nem respondeu, embalou minhas costas num abraço frouxo e foi me levantando aos poucos até conseguir que eu ficasse ereto.
Apalpei novamente o bolso da jaqueta, agora a procura da carteira. Abaixei as mãos até o bolso da calça e lá estava ela.
Puxei com exatidão a única nota dentro dela. Cinqüenta reais. Acho que daria para fechar a minha parte e a de Marcela, se bem que não tinha certeza disso, mas também não me preocupei com o detalhe.
Atravessamos a guia até o outro lado da rua onde havia estacionado a Fiorino. Costumava chama-la de “gatinha”, porque só ela conseguia me aturar nessas horas e não fazia nenhum tipo de comentário maldoso quando eu me excedia na bebida.
Marcela abriu a porta e tentou me empurrar para o banco do passageiro.
-Desculpa Ma, mas na gatinha quem toca sou só eu. Já para seu banco.
Marcela ameaçou ficar, fez bico, cara de “to te odiando”, mas nem assim mudei de idéia e o motor já roncava alto quando ela deu a volta e sentou do meu lado.
Ouvi Marcos gritar do outro lado da rua ainda na mesa: - “Ta de boa mesmo Sérgio?”
Essas perguntas a gente finge que nem ouve, engatei primeira e sai cantando os pneus.
O silêncio foi nosso companheiro por uns longos 10 minutos, e as curvas pareciam ainda mais acentuadas a cada rodada que a cabeça cismava em dar.
De rabo de olho vi que Marcela chorava baixinho. Coisa de mulher. Elas são tão temperamentais quando o lance é bebida.
Fui vendo as luzes da marginal. Daqui a uns 25 minutos estaria no portão da casa de Marcela.
Comecei a relembrar alguns instantes da noite. Marcos que terminou com a Andréia, mas os dois nunca se deram bem mesmo. Aquela mina era muito chata.
E Oswaldo com aquela maldita piada. A mesma da semana passada. Na próxima semana eu ia zoar com ele se fosse a mesma.
Queria chegar em casa, sentir a água do chuveiro bem quentinha, aquela água escorrendo, me envolvendo ... ahhh queria estar naquela água agora ...
Por um instante vi um carro ao meu lado tentando mudar para a mesma pista que eu.
E em instantes só vi a água entrando no carro por todos os lados.
Não era morna como eu almejara a minutos, nem gostosa como imaginava a do chuveiro de casa.
Era água fria e malcheirosa do rio. Era água poluída, era muita água.
Marcela bateu no meu braço com força e me levantei com força:
“-Sérgio, vamos embora. Você está até babando na mesa do bar, tá na hora né? Posso ir dirigindo?”
Apalpei a jaqueta em busca de algo. As chaves, o maço, a carteira.  Apanhei uma nota de cinqüenta reais dentro dela e entreguei as chaves para Marcela.
“Galera, fui ...

30 de mar. de 2011

Coisas indeléveis

Ao deixar o consultório pela décima vez Sérgio ainda não entendia o que houve com ele para que sua memória antiga o tivesse abandonado.
Os médicos já haviam feito diversos exames com a possibilidade de algo mais grave, talvez um tumor no hipotálamo ou uma bactéria rara, mas nada, nem ninguém, conseguia entender porque as lembranças de sua infância na escola era borrões sem nitidez e sem nenhuma clareza.
Quando solicitado que tentasse se lembrar da escola vinham manchas em sua mente. Crianças correndo sem rostos, gritinhos e risadas abafadas soltas no ar sem muito nexo. Ele sabia que eram muitos os amigos da escola, a algazarra lhe propunha isso mas até ai porque não conseguia lembrar-se dos rostos, dos nomes, das pessoas?
Sérgio novamente queria chegar em casa e dedicar algumas horas a procura de suas lembranças. Aqueles pequenos seres que fizeram parte de sua história, de seu passado e que agora ficavam presos e perdidos em sua mente sem que pudessem tomar forma.
Sua cabeça parecia girar ainda mais naquele dia. Já tinha tentado tantos tratamentos com psicólogos e até mesmo procurado ajuda na religião uma vez que uma amiga de trabalho teria sugerido ser algum carma. Nada de sólido nem de concreto. Suas lembranças todas haviam sumido. Não haviam nomes, rostos, semblantes, palavras.
Sérgio estava sozinho como se nunca tivesse vivido esta época. Era como se já tivesse nascido adulto em sua fase madura. O sentimento de sua primeira professora, de seus amigos de recreio, do lanche, da sala de aula, do melhor amigo, tudo era distante e irreal e isso o deixava cada vez mais chateado.
Ele não queria deixar aquilo tudo de lado. Era preciso entender a chave deste problema, lembrar os nomes, examinar a fundo sua cabeça para melhor estimular sua memória. Pensou até em um tratamento de choque, mas nada lhe rendia uma lembrança sequer.
Chegou à sua casa apressado. Precisava procurar novamente o computador. Ultimamente vinha gastando horas diante da tela explorando a internet para ver se algo ou alguém poderia ajudá-lo a desvendar tanto mistério.
Talvez sua infância não tivesse sido tão boa, ou quem sabe um trauma havia se instalado em seu pensamento e por isso não era possível voltar àquela época, mas não importava. Queria pensar com carinho naquela época, mas o que mais podia fazer a respeito?
Sua amnésia temporal era focada na infância, mais direcionada para sua primeira série no Grupo Escolar.
Na internet não havia progredido muito. Um blog, alguns contatos nas redes sociais, mas quem eram aquelas pessoas.
Algumas haviam sido adicionadas a seu perfil. Eram total estranhos. Uma mulher gorda e infinitamente chata, um senhor de cabelos grisalhos que atendia pelo apelido de Fulô e havia inclusive lhe garantido que tinham sido grandes amigos na infância.
Uma mulher bonita, muito bem casada e com 3 filhos que garantia que haviam dividido a carteira na primeira série. Outros tantos que identificavam-se como amigos, colegas, falavam de fatos que não lhe dizia nada. Nomes, muitos nomes que vinham a sua frente como prova de que existia uma primeira série com pessoas reais. Alguns descreviam passagens daquela época, outros mandavam recados com mensagens subliminares, questionamentos que ele não conseguia responder.
- “Nossa cara... você lembra do Ari??? Aquele menino era estranho né?”, mas Sérgio sequer lembrava desse nome. Era como se nunca tivesse tido um único dia de aula com alguém assim.
Debruçava no teclado pedindo ajuda divina para tentar lembrar-se de algo. Já havia ido além, buscou informações junto à escola lista de ex-alunos, fotos, tudo em vão.
Novamente a roda virava com crianças sem rostos, risos e brincadeiras sem personagens, ele simplesmente parecia sozinho em suas divagações.
Não tinha sido uma criança infeliz, muito pelo contrário. A base família e educativa haviam lhe proporcionado grandes resultados em sua vida madura. Criara uma boa família, era um profissional respeitado em sua área, uma pessoa cheia de encantos e carisma, então havia a certeza que o passado era algo bom e sem nenhum tipo de trauma.
Naquele dia estava preparado para mais uma busca inútil na internet. Era como procurar algo que não se sabe o que é. A única pista que tinha de seu passado era um rosto loiro, de olhos muito azuis que lhe vinham a mente toda vez que falava sobre o assunto.
A professora Ilza ... uma espécie de anjo que aparecia em seus devaneios e fazia com que seu pensamento voasse longe.
Era linda. Uma mulher de uns vinte e poucos anos, de olhar brilhante e um sorriso maroto. Era perfeita. Suave, meiga, atenciosa, e porque não dizer a mulher mais linda que já havia conhecido. Sérgio povoava seus pensamentos com aquela figura feminina. Era tudo que restava de sua infância, de seu passado na escolha, de sua história.
Clicou em alguns links e em pouco tempo a tela se abrira para ele com uma mensagem em seu e-mail.
Era retorno de uma das centenas de e-mails que havia enviado no mês, e não era difícil de identificar o remetente.
Em anexo uma foto preto e branco atachada mostrava uma senhora idosa, com olhos tristes e semblante cansado. Os cabelos presos em um coque lhe dava ainda mais idade ao rosto já marcado por várias rugas.
Era Ilza, a Dona Ilza.  A professorinha amada de sua primeira série. Enfim a havia encontrado e era um momento para ele mais que especial.
Poucas linhas preenchiam o espaço. Ela dizia estar bem, e pouco se lembrar desta época que lecionou na escola em questão, mas estava muito contente de ser lembrada com tanto carinho por um aluno.
Antes de assinar ela deixou uma observação que foi responsável por mudar a vida de Sérgio.
PS. Existia um menino que usava um shorts amarelo muito pequeno que deixava a mostra parte de seu bumbum. Você se lembra dele?
Sérgio sentiu sua cabeça girar. Imagens foram se encaixando rapidamente em sua mente como um quebra-cabeças imenso. Rostos foram se formando, nomes chegando, os risos começaram a ter uma origem, as pessoas que haviam sido seus colegas de escola foram surgindo um a um em sua mente.
Sérgio sorriu em silêncio diante da tela do computador. O shorts amarelo era dele e agora entendia porque não se lembrava de nada daquela época.
Havia apagado aquele shorts de sua mente e com ele todas as pessoas que participaram de alguma forma de sua infância.
Agora lembrava de tudo. O Filô, aquele filho da mãe, da Sil, Ma, Ju, enfim ... Era uma pessoa normal. Tinha tido infância, tinha brincado nos recreios, tinha rido, corrido, vivido.
E por alguns instantes praguejou a mãe por ter comprado um shorts tão pequeno e ter feito ele ir à escola durante tanto tempo ... Mas graças ao Shorts amarelo conseguiu lembrar de seu passado e ter ficado na memória da professora amada.
Bendito Shorts amarelo de helanca ...